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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

“Montesquieu nunca pensou em um Judiciário nos moldes brasileiros”

Composto por ministros nomeados pelo presidente da República, o STF guarda laivos de patrimonialismo e compadrio, afirma Lênio Streck. A justiça funciona de uma forma para “o andar de baixo” e de outra para o “de cima”, com uma estrutura processual em duas velocidades

Por: Márcia Junges

Modelo ímpar no mundo, o poder Judiciário do Brasil é “absolutamente” independente. A conclusão é do jurista e professor do curso de Direito da Unisinos e procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, Lênio Streck, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, Montesquieu jamais cogitou um Judiciário com essa conformação. Nomeados pelo presidente da República, os ministros do Supremo Tribunal Federal – STF passam por um exame de indicações políticas. “Por vezes, a amizade pessoal ou a indicação feita por um amigo influente do presidente da República é fator decisivo. Isso quer dizer que a decisão pode sair de uma churrascada, o que, convenhamos, não é nem um pouco republicano. Isso tem de ser modificado”. E completa: “No fundo, o chefe do poder Executivo decide quem será o novo ministro do STF como se fosse uma ‘coisa patrimonialista’ ou de ‘compadrio’”. Streck critica a judicialização que enfraquece, inclusive, a política. Além disso, há que se atentar para os “efeitos deletérios” do presidencialismo de coalisão, que diz respeito não só à relação entre os poderes, mas à garantia da governabilidade via relações “promíscuas” entre Executivo e Legislativo. Outros aspectos deplorados pelo jurista é o fato de a justiça funcionar “de um modo para o andar de cima, e de outro para o andar de baixo” e o “estado de natureza hermenêutico”, algo como uma guerra de interpretações jurídicas entre si, cuja resposta do establishment veio em forma de súmula vinculante. Questionado sobre os maiores desafios da justiça hoje, em nosso país, enfatiza: “Os desafios da justiça começam pela democratização dela mesma. O Judiciário – a justiça em geral – ainda está longe da população, mormente na relação democrática”.

Lênio Luiz Streck cursou mestrado e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e pós-doutorado pela universidade de Lisboa. Atualmente, além de professor da Unisinos, é visitante da Universidade de Coimbra, Roma Tre e Universidade Javeriana, na Colômbia. É presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional e procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Entre seus livros publicados citamos Hermenêutica Jurídica E(m) Crise (10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) e Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas - da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito (4.ed ed Saraiva, 2011). Seu site pessoal é
http://www.leniostreck.com.br/

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em entrevista concedida à IHU On-Line sobre o direito achado na rua , o senhor aponta que cumprir a Constituição é muito mais avançado e crítico do que bandeiras dessa natureza. Por outro lado, há dificuldades em se fazer cumprir a Carta Magna. Quais são os principais entraves ao cumprimento da lei no Brasil?

Lênio Streck –
Sem dúvida, cumprir a Constituição é mais avançado do que brandir bandeiras voluntaristas como o “direito achado na rua”. A concretização do direito não pode ser produto de incursões subjetivistas. Na democracia, não há espaço para concepções “solipsistas”. Não importa para a sociedade o que o juiz pensa particularmente sobre o mundo. Decisões judiciais não são escolhas. Decidir não é o mesmo que escolher. E o que as práticas judiciais estão fazendo no Brasil é colocar a visão individual de cada um sobre o direito. Substitui-se o juízo ético-moral-politico – que é tarefa do Legislativo e do Executivo – pela concepção individual-ativista de cada aplicador. É evidente, por outro lado, que o juiz não é uma “alface”; o intérprete não é neutro; isso é óbvio; essa discussão é muito velha no direito. Já avançamos para além dessa discussão. Trata-se de uma questão paradigmática. Aliás, aqui sempre é preciso lembrar àqueles que não são da área do direito e olham essa área com certo desdém, achando que os juristas são conservadores, que o jurista é alguém que “pensa que direito e lei é a mesma coisa” etc., que já superamos tanto o mito do dado como o voluntarismo-subjetivista. Hoje estamos em uma fase para além da dicotomia “objetivismo/subjetivismo”. Falamos hoje, para ser bem simples, em substituir a subjetividade do intérprete pela intersubjetividade construída a partir da esfera pública, tendo como ponto central a reconstrução da história institucional do direito, respeitando a tradição, a coerência e a integridade do sistema jurídico. Controlar as decisões judiciais quer dizer “controlar hermeneuticamente” as decisões a partir de uma teoria decisional. Esse é, por exemplo, o meu projeto de pesquisa aqui na Unisinos.

IHU On-Line – Por vezes o Judiciário é apontado como um suprapoder em nosso país. O que há por trás dessa afirmação e o que ela guarda de verdadeiro?

Lênio Streck –
Um dos responsáveis por isso é o regime presidencialista de governo. Há a formação de duas vontades: a do poder Legislativo e a do poder Executivo. As tensões acabam no poder Judiciário, poder sem voto. E “tudo acaba sendo judicializado”. Com isso estamos enfraquecendo a política devido ao excesso de demandas sociais, na medida em que o poder Executivo não consegue atendê-las, a população vai à justiça. E o próprio governo se aproveita disso. Em vez de fornecer remédios, prefere “fornecer” um advogado ao cidadão. E esse vai à justiça. Em vez de fazer políticas públicas amplas, com caráter universal, os governos vão “empurrando com a barriga”, com “políticas judiciais ad hoc”. Consequentemente, o judiciário se transforma em catalizador das tensões. Até mesmo os vereadores e deputados, em lugar de fazerem o seu papel, também eles correm ao gabinete do Promotor de Justiça. Além disso, o Judiciário se transforma em superpoder a partir de outro ponto: trata-se do ativismo, espécie de vulgata da judicialização. Ou seja, se a judicialização é contingencial, por se tratar de uma questão de competência ou incompetência governamental, o ativismo vem a ser um problema comportamental, em que os juízes substituem os juízos ético-políticos (para dizer o mínimo) do poder Legislativo e do poder Executivo pelos seus próprios. Parece evidente que isso não é bom para a democracia. Corre-se sempre o risco de embarcarmos em uma “juristocracia”.

Em nome da governabilidade
E há ainda outro elemento que poderíamos mencionar e que toca diretamente a relação interinstitucional entre os poderes constituídos. Trata-se dos efeitos deletérios decorrentes daquilo que teóricos da política vêm chamando de “presidencialismo de coalisão”, que significa, em termos gerais, a necessidade que o Executivo tem de manter relações – no mais das vezes promíscuas – com o Legislativo, num jogo que visa garantir a chamada “governabilidade”. Quer dizer, a tranquilidade com que o governo conduzirá seu planejamento, suas reformas, etc., será determinada pelos vínculos que estão pré-ajustados com as várias bancadas que compõem o Parlamento.

Esse fator também repercute no Judiciário, na medida em que os ministros do STF são indicados pelo presidente da República e sabatinados pelo Senado Federal. A cada nova nomeação – e estamos vivendo agora a expectativa da arguição no Senado de uma nova indicada – volta à baila a discussão a respeito do papel do Senado e da tradição que existe entre nós, que tende a encarar a atividade do Senado como simples ato de chancelar a nomeação efetuada pelo Executivo.

Ora, o fato de convivermos com um regime de “presidencialismo de coalisão” prejudica o andamento democrático desse procedimento, na medida em que a participação do Parlamento na nomeação dos membros da Corte Constitucional acaba sendo sempre tímida. E note-se: no Senado deveriam ser manifestados e esgrimidos argumentos que avaliassem os critérios constitucionais de notável saber jurídico e de reputação ilibada. O Senado representa, nesse caso, o espaço público de discussões. Portanto, uma participação significativa do Senado em tal processo daria mais legitimidade à escolha do ministro. No fundo, essa possibilidade constante da emergência de uma juristocracia, somada a esse presidencialismo de coalisão – que tende a hipertrofiar o poder executivo, na linha do que Guilhermo O’Donnell  chamava de “democracia delegativa” –, tende mesmo a enfraquecer o Legislativo e, consequentemente, a democracia.

IHU On-Line – Como podemos compreender a autonomia judiciária no modelo brasileiro? Em que ela se inspira?

Lênio Streck –
O poder Judiciário é absolutamente independente no Brasil. Aliás, não encontro similar no mundo. Sua independência também é resultante do grau de tensionamento existente entre os poderes. Se ele é o árbitro final das disputas entre os poderes, então ele se fortalece mais ainda. Montesquieu  nunca pensou em um Judiciário nos moldes brasileiros.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios da justiça brasileira hoje, considerando o tipo de sociedade na qual vivemos?

Lênio Streck –
Os desafios da justiça começam pela democratização dela mesma. O Judiciário – a justiça em geral – ainda está longe da população, mormente na relação democrática, isto é, o acesso a ela. As estruturas do poder Judiciário e do Ministério Público são ainda autoritárias. A “sangria do cotidiano” não entra nos Tribunais, especialmente nos Tribunais Superiores. Nesse sentido, há componentes simbólicos que mostram essa distância entre a justiça e o povo. Com exceção do Rio Grande do Sul, nos demais Estados cada juiz de segunda instância (desembargadores) possui carro oficial, com motorista permanentemente à disposição. É um luxo que nenhum país de primeiro mundo se dá.

Outro aspecto acaba sendo a burocracia. Claro que há avanços em relação à desburocratização. Entretanto, corremos o risco da fragmentação das decisões, quando, a pretexto de o Judiciário ser mais rápido, atropela a qualidade. Ou seja, trocamos a inefetividade do varejo pela efetividade quantitativa no atacado. Um dos desafios é o que podemos chamar de efetividade qualitativa, melhorando a qualidade das decisões. Aí entra o papel da academia. Talvez o problema central, hoje, esteja no poder discricionário dos juízes e a consequência direta disso, que é o protagonismo judicial. Qualidade das decisões quer dizer, fundamentalmente, um controle epistemológico da fundamentação das decisões. A Constituição está sendo respeitada? Os juízes não estariam decidindo a partir de suas convicções pessoais? A doutrina está tendo papel relevante? Está sendo feita a devida filtragem hermenêutico-constitucional das leis anteriores à Constituição? São respostas que devemos procurar. Penso que necessitamos de algo que ficou de fora das preocupações dos juristas até hoje em terrae brasilis: uma teoria da decisão judicial.

IHU On-Line – Quais são os motivos que ocasionam a demora dos julgamentos e aplicações de pena?

Lênio Streck –
A estrutura processual montada no Brasil ainda é arcaica. Nosso Código de Processo Penal é da década de 1940. E é um Código que acaba favorecendo a impunidade. Mas, veja-se: a impunidade ocorre especialmente no “andar de cima” da sociedade. No andar de baixo os processos fluem mais rapidamente. Ou seja, a estrutura processual está montada para funcionar em duas velocidades. Essas velocidades acontecem de acordo com o manejo das especificidades e minúcias procedimentais. O projeto que está sendo discutido no Congresso produz sensíveis alterações. Já o Código de Processo Civil é mais problemático. Se o Código de Processo Penal é da ditadura Vargas, o de Processo Civil é da ditadura militar. Entre tantos problemas, talvez o principal seja o do instrumentalismo, isto é, a aposta no protagonismo judicial. Excesso de poder ao julgador acaba fazendo com que haja uma espécie de adaptação darwiniana dos advogados, que construíram, durante décadas, mecanismos de enfrentamento dessa forma de atuação. Dizendo de outro modo: o modelo do Código de Processo Civil segue uma “ideologia” do final do século XIX, um “tardio socialismo processual”, como se os juízes devessem “corrigir” os defeitos da legislação. Só que, nestes tempos, não podemos esquecer que a nossa Constituição trata exatamente das conquistas sociais. Logo, o que deveríamos ter é um efetivo cumprimento da Constituição. A estrutura processualística acaba sendo um obstáculo procedimentalista ao aspecto substantivo-conteudístico previsto na Constituição. O projeto do novo Código de Processo Civil, ao meu sentir, acaba, em grande medida, repetindo os erros do passado. Vejo pouca luz no fim desse túnel.

IHU On-Line – Os ministros do STF são escolhidos diretamente pelo presidente da República. Haveria possibilidade do povo se manifestar na escolha desses magistrados? Há experiências nesse sentido em outros países?

Lênio Streck –
A Constituição estabelece esse modo de indicação. O presidente indica e o Senado aprova. Na verdade, o Senado é que deveria fazer um filtro das indicações. Mas, como afirmei em resposta a uma pergunta anterior, não o faz. Por vezes, os senadores dormem durante a arguição, que acaba sendo meramente formal. Além disso, há uma absoluta falta de critérios na indicação. O presidente escolhe, isto é, indica, como se isso fosse uma coisa pessoal dele (ou, no caso, dela). No fundo, o chefe do poder Executivo decide quem será o novo ministro do STF como se fosse uma “coisa patrimonialista” ou de “compadrio”. E disso não há qualquer accountabillity. Há exame de currículos? Na verdade, há exame de indicações políticas. Por vezes, a amizade pessoal ou a indicação feita por um amigo influente do presidente ad República é fator decisivo. Isso quer dizer que a decisão pode sair de uma churrascada, o que, convenhamos, não é nem um pouco republicano. Isso tem de ser modificado. Mas também não creio que a Bolívia, única experiência de participação popular direta, seja melhor exemplo. A grande alteração talvez passasse pela transformação do Supremo Tribunal Federal em um Tribunal Constitucional, cujos membros fossem indicados pelo Parlamento, em conjunto com setores da sociedade. Os juízes desse Tribunal teriam, como na Europa, mandatos fixos. Lamentavelmente, não é assim. Hoje, os juízes do STF são vitalícios.

IHU On-Line – Como se dá a relação entre os três poderes em nosso país? O Judiciário tem preponderância sobre os outros? Por quê?

Lênio Streck –
Já respondi anteriormente. A hipertrofia do Judiciário se dá pelo vácuo deixado pelos demais poderes. Acrescentaria, ainda, que há também um fator, por assim dizer, teorético, de formação do imaginário dos juízes. Após a Constituição de 1988, pela falta de uma teoria adequada à nossa especificidade, importamos, de forma equivocada, uma “tardia jurisprudência dos valores” da Alemanha, uma leitura errônea de uma teoria da argumentação jurídica e, finalmente, sofremos a influência de uma leitura rasa do ativismo norte-americano. O resultado disso foi a exacerbação de teses voluntaristas, pelas quais cada juiz decide como quer. Aliás, nesse sentido, formou-se algo que venho denominando de “estado de natureza hermenêutico”, uma espécie de guerra de interpretações entre si, um caos significativo. Aliás, o establishment jurídico deu uma dura resposta a esse caos: a súmula vinculante, espécie de leviatã hermenêutico. Claro que a súmula não é um mal em si. Entretanto, logo foi lida como um aprisionamento interpretativo. Mas isso é assunto para outra entrevista.

IHU On-Line – Qual é a atualidade da concepção kantiana de autonomia para as decisões dos magistrados?

Lênio Streck –
Em certo sentido, Kant é um filósofo sempre atual. Ernildo Stein  costuma dizer que foi Kant quem conduziu os filósofos à posição de filósofos, dando a eles um campo específico para conduzir suas reflexões em torno do problema do conhecimento. Nesse sentido, é difícil imaginar uma questão filosófica – como o é a questão da decisão judicial – que possa ser enfrentada colocando Kant à margem da reflexão. Todavia, isso não pode levar à conclusão de que a filosofia kantiana – tanto a teórica como a prática – possa servir como um referencial adequado para se pensar os problemas do direito que emergem das sociedades contemporâneas. A preocupação com uma justificação intersubjetiva das decisões, já mencionada anteriormente, representaria um ponto crítico para a filosofia kantiana. Em primeiro lugar porque, por motivos óbvios, Kant não pensa a linguagem em termos intersubjetivos. Aliás, penso que o grande problema da construção da noção de autonomia em Kant – e a autonomia é, para Kant, a autarquia de onde nasce a vontade, ou a boa vontade – aparece muito colada à noção de subjetividade.

No fundo – e essa discussão não é nada consensual entre os filósofos –, penso que Habermas  estava certo quando apontava para o solipsismo que emerge da razão prática kantiana (em sua obra sobre o direito, Habermas chega a afirmar que “substitui a razão prática, eivada de solipsismo, pela razão comunicativa).

Decisões legitimadas democraticamente
Nesse sentido, sem negar a importância filosófica de Kant, penso que a teoria do direito, hoje, deve pensar o problema da decisão e da independência do juiz para além dessas concepções subjetivistas derivadas da teoria do conhecimento kantiana e da sua ideia de razão prática. A grande questão atual, me parece, passa por pensar meios de segurar a vontade isolada desse sujeito autônomo da modernidade, de modo a se pensar numa construção de sentido no momento decisional que possa produzir critérios intersubjetivos de justificação. Ou seja, não se pode aceitar o argumento da boa vontade do intérprete ou de uma descoberta solipsista de sua consciência como fatores justificantes da decisão que se apresenta a público. É preciso prestar conta dos argumentos oferecidos; reconstruir a cadeia da história institucional do direito; mostrar os reflexos da decisão que se toma naquilo que já foi estabelecido pelas decisões anteriores, bem como projetar os efeitos que ela produzirá nas decisões futuras. Enfim, trata-se de construir condições para que as decisões possam ser legitimadas democraticamente.

Evidente que esse processo hermenêutico de crítica-controle do sentido construído pelas decisões não pode ser tido como prejuízo para a autonomia dos juízes, se entendermos por essa expressão o problema da independência funcional dos magistrados. É evidente que o Estado deve garantir as condições para que o órgão jurisdicional possa decidir as questões jurídicas sem as injunções de pressões externas, com tranquilidade para produzir bons argumentos, etc. Todavia, não se pode aceitar que, a pretexto da independência funcional (que, como o próprio nome refere, diz respeito à função), possamos aceitar teoricamente o argumento da independência e da autonomia dos magistrados, como um cheque em branco para decidirem como querem ou, como é costume dizer no judiciário brasileiro, decidir conforme a consciência. Ora, a filosofia contemporânea já demonstrou suficientemente que a linguagem transborda a consciência e que ela, a linguagem, não é propriedade de um sujeito cognoscente; mas, antes, ela é condição de possibilidade para que esse sujeito construa, de maneira intersubjetiva, seu conhecimento sobre o mundo.

IHU On-Line – A justiça é a mesma para pobres e ricos? Por quê?

Lênio Streck –
No plano penal, vale a frase dita por um camponês de El Salvador, depois de perder as suas terras em uma disputa judicial: La Ley es como la serpiente. Sólo pica a los descalzos. A justiça funciona de um modo para o andar de cima e de outro para o andar de baixo. Para termos uma ideia, peguemos o crime de lavagem de dinheiro, cometido, obviamente, apenas pelo “andar de cima”. Desde a aprovação da lei em 1998, foram condenadas apenas 17 pessoas; ao mesmo tempo, foram condenadas mais de 100 mil pessoas pobres, por crimes típicos do “andar de baixo” (furtos, estelionatos, apropriações, etc.). É preciso dizer mais?

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Lênio Streck –
Penso que a democracia brasileira avançou. E graças à Constituição e às instituições que tratam das relações entre Estado e sociedade. Entretanto, as distâncias sociais continuam. O ensino jurídico tem um papel importantíssimo para a construção de um discurso crítico. O direito do Estado Democrático de Direito, que é efetivamente um novo paradigma, tem um perfil emancipador. Isso quer dizer que o direito, depois de Auschwitz, tinha que vir de forma diferente. Esse novo direito possui um elevado grau de autonomia. O positivismo jurídico comandou o século XIX e o início do século XX: ao separar a moral do direito, foi responsável pelos fracassos desse mesmo direito, com duas guerras, massacres, etc. O “direito pós-bélico”, esse novo direito, trouxe para “dentro dele”, isto é, para os textos constitucionais, aquilo que Habermas chama de institucionalização da moral no direito. A questão, portanto, hoje, é responder à pergunta: pode o direito ser imoral? Essa questão é de suma importância. Daí as grandes pesquisas que vêm sendo desenvolvidas, por exemplo, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, que, exatamente por isso, é nota 6-Capes, topo do ranking nacional. Já não estamos mais preocupados com o velho positivismo, que denomino de exegético ou legalista. Agora a preocupação é com o voluntarismo judicial, que não deixa de ser uma forma de positivismo, eis que eivado de discricionarismos. Por que, depois de elaborarmos uma Constituição tão rica como a nossa, delegarmos a sua concretização ao ativismo judicial? Isso não enfraquece a cidadania? Por isso a judicialização não é única forma de emancipação. É nesse contexto que fincamos nossa bandeira.

Leia mais...

Lênio Streck
já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line:

*
Uma análise sociológica do direito. Edição 305, de 24-08-2009

*
Reféns da Lei. Que justiça é essa? Edição 269, de 18-08-2008

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