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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O deus Jano, o Exu e o Réveillon de todos nós

DEBATE ABERTO


Há um mundo carregado de mistério no que somos no Réveillon. E é no quanto a palavra se refere a sonho, ao “Rêve”, que nos abraçamos e nos beijamos, desejando-nos mutuamente, o que o próprio deus Jano também não sabia: se a posteridade nos vai sorrir ou se será simplesmente aquilo, tautologicamente, que só o futuro sabe.

Num mundo previsivelmente administrado como o nosso (alguns pensadores falam, sem meias tintas, de uma espécie de diktat do sistema, a gerenciar, inclusive, as horas de lazer dos cidadão), causa certo espanto que nos deparemos com símbolos tão escancarados e, no entanto, aparentemente meros aparatos como as chamadas "Festas de Fim de Ano ". Deus Nosso Senhor não deixou nenhum indício de que o que chamamos de "ano" devesse ter 12 meses e 365 dias. E que, num instante qualquer do universo, haja uma espécie de parada cósmica, para o tilintar de taças, já que naquele momento, passou-se, por fim, um ano na terra. E que o "Feliz Ano Novo" seja saudado de Seca a Meca, como um corolário do nosso tempo humano. É a adesão ao que parece a uma convenção, mas talvez tão impositiva quanto o nosso sentimento religioso.

Augusto Comte, criador do positivismo, desmistificou o quanto pode as crenças religiosas – elas seriam de um tempo”não científico” - isso até o dia em que ele próprio resolveu criar a sua "religião da Razão". Devia ter certeza de que, procedendo assim, dava a um rito qualquer, um certo status – quase, quem sabe, como esse que concedemos às comemorações de um "Novo Ano", dito como "Bom" pelos publicitários, esses exegetas da sacralização dos negócios rendosos.

Nada demais, parece, que seja assim. Convencionamos que o mundo se divide em anos, no número mágico de 12 meses, com períodos de doze horas que, ao ser duplicado, faz de um dia 24 horas ( doze mais doze). Mera convenção com ares de magia, como são doze o número de apóstolos de Cristo. Marx falava, a propósito, do poder dos mortos sobre os vivos. De fato, na crença de que na comemoração do Novo Ano, imitamos as cobras, por exemplo, ou seja, no caso, a natureza, mudando de pele - guardamos de que seguimos o ritmo do universo. É assim desde o tempo dos nossos avós, já mortos. Quando a chuva ou o tempo nublado nos deixam entrevê-las – as estrelas, por acaso, não cintilam mais radiosas?

Aliás, a própria idéia de lavagem das casas e corpos, em processos chamados de "descarregos", não raro com ervas e incenso, induzem a que todos pensemos na passagem do ano como um momento encantatório. Temos computadores e tablets - o neon acompanha os fogos de artifício espocando das ruas, mas o simples anúncio da meia noite - a despeito dos nossos horários de verão anteciparem a sua metade "real" ( isso existe?)- fazem-nos vibrar à loucura. Fica a pergunta: qual mesmo a diferença com outras manifestações proto-religiosas ou decididamente religiosas alhures - e que são acompanhadas por tambores e, a depender do lugar, assistidas, plácida e indiferentemente, por camelos e leopardos?

Levy-Strauss e outros antropólogos devem ter mil razões para nos explicarem nos nossos réveillons. É expressivo, contudo, que o termo venha do francês "Reveiller", que é acordar. "Réveillon", a rigor, seria a ceia no meio da noite, quando algo sonâmbulos, somos acordados para uma confraternização, ao redor de uma mesa farta, com amigos. Mera casualidade? Talvez. No entanto, poucos eventos nos põem, inclusive etimologicamente, tão próximos dos sonhos.

A dimensão onírica embutida no Réveillon – a raiz da palavra é a mesma de “rêve,”, ‘sonho’ em francês – explica-se no sucedâneo da festa – muitas libações - na verdade, a celebração mais próxima e antecipatória que temos (com exceção do Carnaval) dos célebres bacanais. Que, por sua vez, talvez se expresse na idéia que temos da palavra – mas que tem a ver com os mistérios. A loucura, seja pelo artifício do vinho ou de outra droga qualquer, sempre nos arrebata para a alteridade. Que tanto pode descambar para o ridículo – o “Nego bebo” cantado pela marchinha de carnaval (“Chi, tem nego bebo aí...), quanto para a “iluminação” do Pai-de-Santo: é a custa de cachaça e de tabaco que o babalorixá se comunica com os orixás.

“In Vino Veritas” – “No vinho está a verdade” diziam os romanos, a se prever certamente, das muitas e boas que dizemos – e fazemos - quando o álcool elimina a nossa autocensura. Alexandre Magno matou um de seus melhores amigos quando este lhe disse que estava embriagado, a tropeçar entre os móveis e as alfaias de seu palácio

Pode-se retomar, porém, à questão do mágico. Parece em tudo significativo que ao Natal, sigam-se as festas do Ano Novo. Depois do recolhimento teórico do Natal, a festa se prolongaria para a esbórnia do Réveillon. O interessante é que são poucas as menções da arte a propósito do Novo Ano. Bach e outros compositores compuseram cantatas e oratórios “de Natal”. Quase todos os pintores da Renascença e do Barroco demoraram-se sobre o ciclo natalino, ora comemorando o simples nascimento, ora reportando-se à chegada dos Reis Magos. Sobre o Ano Novo, entretanto, quase nada.

Por que?
Talvez por sua origem anterior a Cristo. E que parece o melhor do Ano Novo. Tudo se faria em torno de um deus romano, chamado Jano, que deu origem ao nome do primeiro mês do ano – janeiro – e que tinha duas faces – uma para trás e outra, justamente aquela que evocamos, na passagem do ano, e que se coloca entre o passado e o futuro, voltada para a frente. Janos seria a condição do homem no Réveillon. É o deus do contraditório, aquilo que, de um lado todos somos no instante em que contamos o tempo regressivamente. Ao desembarcarmos no “zero”, depois da contagem dos segundos, assumiríamos as duas faces de Jano, o padroeiro do janeiro. Somos o passado – que sabemos como foi – mas somos também o mistério – a dúvida – assumida pela outra face do tal deus – aquela que olha para o futuro e que é inexorável, tanto para o bem quanto para o mal.

Há, em suma, um mundo carregado de mistério no que somos no Réveillon. E é no quanto a palavra se refere a sonho, ao “Rêve”, que nos abraçamos e nos beijamos, desejando-nos mutuamente, o que o próprio Jano também não sabia: se a posteridade nos vai sorrir ou se será simplesmente aquilo, tautologicamente, que só o futuro sabe.

São questões de que passamos ao largo. Mas é interessante que pensemos o Réveillon apenas como uma festa sem o que nem porquê. E que, no Brasil, o associemos ao período que se estende até o carnaval, quando então a vida recomeça, inclusive - ou principalmente, em Brasília.

Em tempo: Jano era o deus que abria as portas. Tudo a ver, numa certa medida, com o nosso Exu – o Tranca-Ruas.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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