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sábado, 8 de agosto de 2015

Em grande parte usuários, condenados por tráfico têm baixo índice de reincidência

CRIMINOSO OCASIONAL




O tráfico de drogas é o crime que tem a menor proporção de condenados reincidentes em comparação com aqueles que não têm antecedentes criminais. Enquanto 19,3% dos condenados são réus primários, 11,9% dos que já cumpriram pena e voltam a receber sentença penal praticaram a conduta do artigo 33 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
Os dados estão no estudo “Reincidência Criminal no Brasil”, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do Conselho Nacional de Justiça. Para especialistas ouvidos pela revista Consultor Jurídico, a principal razão dessa queda é que muitos usuários são enquadrados como traficantes, e, por não serem criminosos habituais, não voltam a infringir a lei.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio acredita que esse dado decorre de erros nas classificações dos crimes: “Muitas vezes condena-se como traficante quem não é um propriamente dito. É um usuário que precisa se drogar”.
Mariz de Oliveira afirma que grandes traficantes dificilmente são presos.
Nelson Jr./SCO/STF
O criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira partilha dessa visão. Ele afirma que “dificilmente” um grande traficante é preso no Brasil. Os detidos por drogas são sempre usuários ou pequenos comerciantes, os chamados “aviõezinhos”, diz.
O coordenador do estudo pelo Ipea, o sociólogo Almir de Oliveira Júnior, concorda com essa interpretação. Ele também supõe que a menor taxa de reincidência pode resultar do grande número de mortes de traficantes.
O juiz e professor de Processo Penal da Universidade Federal de Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa elenca outros dois motivos para os condenados por tráfico não voltarem a cometer este crime. Um é a perda do ponto de venda de drogas — enquanto estão presos. O outro é o ingresso no mercado formal de trabalho. Segundo ele, novas responsabilidades — como a formação de uma família — fazem com que o risco não valha mais a pena para aqueles que entraram cedo no ramo de entorpecentes.
Morais da Rosa analisa que a classificação de usuários como traficantes decorre de um viés punitivo da polícia, que se mostra inconformada com a leve punição ao porte e ao consumo estabelecida pela nova Lei de Drogas. Na norma anterior, a Lei 6.368/1976, essas condutas eram apenadas com detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 20 a 50 dias-multa. Porém, a partir de 2006, passaram a ser punidas com advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade, e inserção em curso educativo. Para garantir o cumprimento dessas medidas, o juiz pode dar uma bronca no usuário ou aplicar multa.
Enquadrar usuário como traficante é efeito da nova lei, diz Morais da Rosa.
Reprodução
“Enquadrar usuários como traficantes é um efeito rebote da nova lei. O artigo 16 da lei anterior previa uma pena razoável para porte e consumo. Já a nova lei gera uma sensação de que o usuário não é punido. E os PMs, via de regra, são movidos pela ideia de que há um diabo que é o traficante, e que é preciso puni-lo. Por isso, há a classificação forçada de uma série de pequenos usuários como vendedores de drogas”, explica o juiz.
Penas maiores não inibem
O levantamento do Ipea/CNJ mostra que os crimes que têm penas mais altas, como homicídio, lesão corporal e tráfico de drogas, possuem entre os condenados maior proporção de primários do que de reincidentes. Já no caso de crimes com punições mais leves, como furto, roubo, e porte de entorpecentes, a relação é inversa: a maioria dos condenados já recebeu pena por outro delito.

 
Tipo penal imputado na sentença
CrimePrimário (em % dos condenados)Reincidente (em % dos condenados)
Furto20,627,5
Roubo18,622,8
Tráfico de drogas19,311,9
Homicídio/latrocínio8,75,7
Porte e/ou posse de arma de fogo6,06,2
Aquisição/porte/consumo de droga3,27,3
Estelionato3,24,1
Lesão corporal3,42,6
Receptação2,04,1
Outros14,87,8
Fonte: Reincidência Criminal no Brasil, Ipea/CNJ, 2015.
Porém, esses dados não querem dizer que penas altas inibem os crimes de forma mais eficiente, declara o ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil José Roberto Batochio. “Ninguém deixa de cometer um crime porque a pena é alta. Para os infratores, isso não faz diferença, uma vez que eles não acham que vão ser pegos”, analisa o criminalista.
Ninguém deixa de cometer crime por causa da pena, afirma Batochio.
Reprodução
O ministro Marco Aurélio diz que essa tese — do chamado Direito Penal Simbólico, que parece bastante popular no Congresso — decorre de uma “visão distorcida” da realidade. Oliveira Júnior, do Ipea, também discorda dessa interpretação, e diz que os números têm mais relação com a natureza desses crimes do que com suas consequências jurídicas: “Grande parte dos homicídios e lesões corporais consiste em crimes passionais, cometidos entre pessoas que se conheciam e tiveram um desentendimento. Não significa que a pessoa reincidirá”.
Mariz de Oliveira entende que, na realidade, penas mais altas podem inclusive aumentar o número dos que voltam à cadeia, seja por prisões cautelares, seja por condenações após o retorno à condição de réu primário. Isso porque ao passar seis, sete anos na prisão, o detido se forma na “faculdade do crime”, e dificilmente consegue se reintegrar à sociedade.
Taxa alta
O estudo aponta que, de forma geral, um a cada quatro condenados no Brasil recebe uma nova sentença criminal no prazo de cinco anos após o término de sua pena, uma taxa de 24,4%. O Ipea e o CNJ usaram o conceito de reincidência dos artigos 63 e 64 do Código Penal no trabalho. Com isso, os pesquisadores examinaram uma amostra de pessoas que terminaram de cumprir pena em 2006, e verificaram se eles foram novamente condenados entre esse ano e 2011.

Essa definição é mais restrita do que as aplicadas a pesquisas anteriores sobre o assunto. Considerando reincidente quem volta a ser condenado ou a cumprir prisão cautelar ou medida de segurança, a qualquer tempo, a Comissão Parlamentar de Inquérito do sistema carcerário e o Departamento Penitenciário Nacional afirmaram que a taxa de reincidência no Brasil era de 70% a 80%. Outros levantamentos chegaram a índices de 47% em São Paulo e 30,7% no Rio de Janeiro.    
Mesmo ressalvando que a reiteração criminosa é “muito maior” quando se afasta o critério temporal, o coordenador do estudo considera a taxa de 24,4% alta. A seu ver, ela demonstra que o Estado não está fazendo um bom trabalho para evitar que condenados voltem a infringir a lei.
Para promover políticas públicas que reduzam esse índice, o Estado tem que melhorar suas pesquisas, sugere Oliveira Júnior. De acordo com ele, é preciso conhecer a fundo os presos e acompanhar o retorno deles ao convívio social. Somente assim seria possível conhecer suas dificuldades e necessidades, e traçar ações mais eficazes.
Os números foram colhidos por Ipea e CNJ em presídios de sete estados: Alagoas, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Essa limitação geográfica faz com que o levantamento não reflita fielmente a situação da reincidência no Brasil, avalia Morais da Rosa. Segundo ele, cada região tem peculiaridades locais que impactam a situação criminal. Por isso, se forem usadas informações isoladas, o resultado pode ficar distorcido. O baixo número de presos analisados (817, de um universo de 600 mil) reforça que os dados devem ser relativizados, afirma o professor da UFSC.
Redução da maioridade penal
Após os 25 anos, há mais condenados reincidentes do que primários, detalha a pesquisa. Isso mostra que quem comete um crime enquanto jovem tem maiores chances de voltar a delinquir. Se a maioridade penal for reduzida de 18 para 16 anos — medida já aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados —, a tendência é que a taxa de reincidência aumente ainda mais no país.

Oliveira Júnior garante que isso ocorreria, “principalmente pelo fato da prisão funcionar basicamente como um local de aprendizagem e aprofundamento na carreira criminosa”. Mariz de Oliveira concorda, ensinando que o “presídio é um círculo vicioso, já que quem é jogado no local, para lá volta”.
Mudança de paradigma
A prisão não deve ser entendida como mero instrumento de punição. Seu objetivo principal tem que ser a reintegração do encarcerado na sociedade. Essa é a conclusão à qual chegaram Ipea e CNJ sobre os dados levantados na pesquisa.

O coordenador do estudo elenca sugestões para mudar esse paradigma: “Algumas mudanças urgentes são a separação [dos presos] por tipo penal, a criação de programas para aproximação com as famílias dos apenados, já que a família será o principal elo de transição para um recomeço de vida, além da formulação de critérios claros e procedimentos padronizados para seleção dos indivíduos que vão participar dos programas de ressocialização, uma vez que os recursos nunca são suficientes para atender à toda população detenta de uma forma efetiva”.
Estado precisa garantir emprego de ex-presidiário, diz Maro Aurélio.
Fellipe Sampaio /SCO/STF
Aos olhos do ministro Marco Aurélio, essa transformação só será possível se o Estado buscar garantir empregos aos que saem dos presídios. Para ele, isso poderia ser feito por meio de convênios com entidades voltadas a esse fim. Nesse caso, a Administração Pública poderia atuar como fiadora dessas instituições. Porém, o ministro reconhece que não é fácil alterar a concepção que a sociedade tem dos ex-prisioneiros: “Infelizmente, as pessoas são preconceituosas, e não recebem de bom grado quem já foi custodiado”.
O criminalista Mariz de Oliveira recomenda investimentos na educação dos encarcerados, tanto técnica, para ensiná-los um ofício ou promover o aperfeiçoamento dos que já tiverem um, quanto artística, para possibilitar que eles “descubram talentos que nunca souberam que tinham”.
Battochio é mais radical, e afirma que a pena de prisão não é solução para nada, por mais que o Estado busque mitigar os efeitos deletérios do encarceramento. Morais da Rosa também é adepto dessa visão, e defende o fim dos presídios. Segundo ele, caso reduzíssemos os tipos penais, estabelecêssemos outros sistemas de penas e implantássemos uma estrutura administrativa de punição a delitos, teríamos uma verdadeira redução da criminalidade no Brasil. O juiz ainda lembra que, apenas em 2013, o Brasil gastou R$ 4,9 bilhões com cadeias, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Sem detenções, esse dinheiro poderia ser alocado para áreas mais construtivas, como saúde e educação, diz.
Estudo e trabalho
Conforme o levantamento, 80,3% dos reincidentes não terminaram o ensino fundamental, e apenas 0,7% dos que voltam a cometer crimes concluíram um curso superior. Na análise do pesquisador do Ipea, para abaixar o índice de reincidência, o Brasil precisa melhorar suas escolas e universidades.

A esmagadora maioria dos reincidentes é homem: 98,5%. Quanto a raça, 53,7% dos que voltam a praticar delitos são brancos, 34,7%, pardos, e 11,6%, negros. Contudo, o Ipea e o CNJ observaram que esses números podem não refletir a realidade, visto que 39% não responderam tal pergunta.
Além disso, a pesquisa mostra que 92,5% dos reincidentes trabalhavam quando cometeram a infração. Para Oliveira Júnior, “a forte desigualdade encontrada no país tem, provavelmente, mais efeito sobre a taxa de criminalidade do que o desemprego”.
Clique aqui para ler o estudo.
 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico

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