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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Descumprimento de medida protetiva à mulher exige atuação policial preventiva

O texto aborda a Lei Maria da Penha, seus nove anos de promulgação (07.08.2015), as medidas protetivas de urgência, seu descumprimento e a necessidade de atuação policial preventiva como forma de efetivação dos direitos humanos das mulheres vítimas.
A Lei n. 11.340/2006, conhecida popular e simbolicamente como Lei Maria da Penha (“LMP”), a qual completará 09 (nove) anos de existência em 07 de agosto de 2015, é um instrumento de promoção dos direitos humanos (artigo 6.°, LMP) e de efetivação da proteção ao gênero feminino, vulnerável pela própria condição existencial em culturas de sociedades propagadoras de estímulos masculinistas[1] e androcêntricos, fomentadoras de relacionamentos afetivos verticalizados e com dominação de poder.
Direitos humanos não ponderam gênero, cor, raça, etnia, orientação sexual, nível cultural, idade, situação social, familiar ou econômica. São também atributos das mulheres. Direitos, pois, dos seres humanos.
Chico Alencar assevera que “a cultura predominantemente masculinista – aquela mesma que ainda faz do macho ocidental, branco e rico o símbolo maior de poder na espécie humana – manteve esta já tradicional generalização de homemcomo representante de homens e mulheres...”[2]
A aludida Lei é um mecanismo de coibição à violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres vítimas (violência intrafamiliar e de gênero), integrantes de grupo socialmente vulnerável e merecedoras de proteção especial do Estado, consoante apontado no artigo 4.°, inc. XI, da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (“LONDP” – LC n. 80/94 c/c LC 132/2009)[3].
Enquanto instrumento de proteção à vulnerabilidade do gênero feminino, a LMP trouxe quase que integralmente dispositivos de natureza cível, não visando à criminalização desenfreada, emergencial, populista e simbólica[4] de condutas humanas desviadas, respeitando-se o papel científico da Vitimologia[5], como forma de empoderar as mulheres vítimas, dando-lhes maior participação social, política e jurídica, e de eliminar a cifra negra (decorrência comum das infrações intrafamiliares) e a vitimização secundária ou “sobrevitimização do processo penal” (sofrimento adicional imposto às vítimas em virtude da dinâmica do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal).
Preocupou-se a Lei n. 11.340/2006 (LMP) com a efetividade das medidas protetivas e preventivas às mulheres, vítimas efetivas ou potenciais, seja por meio da educação em direitos e da prevenção cultural da criação de inconsciente coletivo[6] vitimizador do papel das mulheres (art. 4.°, incs. III, V, VI, VII, VIII e IX, da LMP), da criação de órgãos especializados e sua integração operacional (Vara Especializada em Violência à Mulher, Promotoria da Mulher, Núcleo da Defensoria da Mulher, Delegacia da Mulher, Centros de Referência em Atendimento à Mulher, Polícias Comunitárias, Centros de Reabilitação e Educação dos autores da agressão, Equipes de Atendimento Multidisciplinar etc.) – conforme arts. 8.°, I e IV, 14, 28, 29, 32, 33 e 35 da LMP –, seja por meio da legitimação ampla e concorrente para pleitear as Medidas Protetivas de Urgência (“MPU”), deferindo-se capacidade postulatória à própria vítima (arts. 12, III, 19, 27-8, LMP) e desprezando-se a necessidade de trâmite de investigação criminal ou de processo-crime ou cível para seu conhecimento e deferimento (“natureza cautelar cível satisfativa” das MPUs: STJ, REsp n. 1.419.421/GO, T4, DJe 07/04/2014[7]).
Em briga de marido e mulher, o Estado e a Sociedade metem a colher, na medida em que violência doméstica, familiar ou afetiva contra as mulheres é de interesse e responsabilidade de todos.[8]
O deferimento judicial das indigitadas Medidas Protetivas (MPUs) nem sempre é bastante para proteger a vítima da prática de atos de violência (não necessariamente criminosos ou contraventores), novos ou em descumprimento de ordem judicial cível.
A medida protetiva é uma forma de amparo aos direitos fundamentais da mulher vítima e de resposta imediata ao (à) autor (a) da agressão, havendo meios institucionalizados para dar-lhe efetividade.
O descumprimento de ordem judicial cível que defere medida protetiva de urgência com base na Lei n. 11.340/2006 (LMP) não consubstancia a infração penal de menor potencial ofensivo de desobediência (art. 330 do CP), já que segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) sua caracterização depende do descumprimento de ordem judicial e da inexistência de previsão de sanção específica (civil e/ou administrativa)[9], como imposição de multa, agravamento das medidas protetivas, requisição de força policial, decretação de prisão preventiva etc., em atenção aos princípios da legalidade, taxatividade e intervenção penal mínima (Direito Penal Mínimo).
Nos autos do HC n. 312.513/RS, DJe 28/05/2015, a Quinta Turma do STJ asseverou que “a jurisprudência desta Corte Superior firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista previsão de sanção específica”. Acrescentou que “a Lei 11.340/2006 determina que, havendo descumprimento das medidas protetivas de urgência, é possível a requisição de força policial, a imposição de multas, entre outras sanções, não havendo ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do delito de desobediência”.
Sob a evasiva de o descumprimento de ordem judicial de concessão de MPU não caracterizar crime de desobediência e de não haver ato criminoso novo (ameaça doméstica, crime contra a honra, tentativa de homicídio ou de delito sexual, lesão corporal, vias de fato etc.), a Polícia Estatal vem se recusando a atender a chamado das mulheres vítimas que se veem ameaçadas, constrangidas ou inseguras em virtude do descumprimento pelo (a) autor (a) da agressão da medida protetiva lha deferida, como quebra do distanciamento mínimo, afastamento do lar, incomunicabilidade e outras formas abertas de proteção à vítima (arts. 4.°, 22, § 1.°, 23-4 da LMP e 461 do CPC).
Como dito alhures, a LMP visou à proteção do gênero feminino a partir de medidas eminentemente cíveis e administrativas, não criminalizando condutas para amparar as mulheres vítimas, sabedora de que a criminalização só por só não é instrumento de combate e contenção da criminalidade, máxime em se tratando de delitos intrafamiliares, os quais têm motivação específica, circunstância e ambiência diversas, cultura difusora de estímulos masculinistas e outros fatores estimuladores da violência doméstica, familiar ou afetiva contra as mulheres.
Se a Lei n. 11.340/2006 adota medidas prioritariamente cíveis e o descumprimento de MPU não se subsume ao crime de desobediência, como a Polícia exige a caracterização de infração penal para sua atuação ostensiva e preventiva? A efetividade de medidas de proteção à mulher é dependente da caracterização de crimes, tentados ou consumados?
O Estado adotou providência, concreta, para atuação policial efetivadora do cumprimento das medidas protetivas de urgência?
O Legislativo decidiu apresentar um Projeto de Lei visando à criação de mais um crime: delito de descumprimento de medida protetiva de urgência da LMP[10], como se necessário fosse para exigir intervenção policial preventiva nos casos de descumprimento de ordem judicial cível concessiva de MPU.
A Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados (CD) aprovou no dia 01/07/2015, por unanimidade, o parecer favorável à tipificação do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência em favor das mulheres vítimas de violência doméstica, familiar ou afetiva.
O PL n. 173/2015 altera o art. 22 da LMP, acrescentado-lhe o § 5.°, com a seguinte redação: “o descumprimento de determinação judicial concedida em medidas protetivas desta Lei é crime punido com detenção de 30 (trinta) dias a 02 (dois) anos”, tratando-se de infração penal de menor potencial ofensivo, em relação aos quais o processo-crime tramitará no Juizado de Violência contras as Mulheres, e não no Juizado Especial Criminal (“JECrim”), consoante arts. 33 e 41 da LMP c/c ADC n. 19/DF[11] e ADI n. 4.424/DF[12], não sendo aplicáveis os institutos despenalizadores da transação penal e suspensão condicional do processo, na inteligência do art. 41 da LMP e do recente Enunciado n. 536 de Súmula do STJ.
Na Justificativa do aludido PL foi explicado que “para noticiar o descumprimento e o risco iminente em que se encontra, a mulher se vê obrigada a conhecer os demais atores da rota crítica institucional, no caso o Ministério Público e a Defensoria Pública da Mulher, e buscá-los diretamente, ou por orientação da delegacia de polícia, a fim de que possa noticiar a violação da determinação judicial e obter providências”.[13]
Continua a justificativa do PL n. 173/2015: “o percurso é exaustivo e contribui para o desestímulo da mulher na denúncia das violências e diminui demais a confiança no sistema de justiça. De muito maior gravidade, é ainda a situação de flagrância de descumprimento, uma vez que o entendimento jurisprudencial impede a ação imediata da Polícia Militar. Ao detectar o descumprimento da medida protetiva e aproximação do agressor ou seu retorno ao lar depois de judicialmente afastado, a mulher em situação de violência aciona o serviço 190 da Polícia Militar, mas somente poderá obter a ação policial efetiva se tiver sofrido nova ameaça ou agressão física. Por certo se trata de um imenso absurdo, que demanda correção imediata da lacuna legislativa.”
Arremata-se da seguinte maneira: “é inconcebível esperar que a mulher deva, no calor dos fatos, submeter-se a mais um episódio de violência para obter a proteção estatal, mas é exatamente o que ocorre uma vez que a desobediência, por si, é interpretada pelos Tribunais como fato atípico, o que impede a autuação em flagrante do agressor.”
Segundo a Constituição do Brasil (CRFB), em seu artigo 144, § 5.°, “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.
A função da Polícia Militar é de preservação da ordem pública por meio da prevenção de infrações legais (profilaxia criminal), da função ostensiva (não velada ou secreta) e repressiva[14], fiscalizando comportamentos e atividades.
Não lhe cabe atuar apenas nos casos de prática de infração penal, mas sim como forma de prevenir a efetiva prática ou tentativa de crime ou contravenção penal. No caso de descumprimento de medida protetiva deferida à mulher o autor da agressão demonstra perigo à vítima, potencial prática de infração penal e desobediência à ordem judicial, devendo a Polícia atuar em caráter preventivo como forma de assegurar efetividade às determinações judiciais cíveis concessivas de MPU.
Não se trata de fazer prisão em flagrante do autor da agressão, cumprir mandado de prisão preventiva ou necessariamente conduzi-lo à Delegacia (Especializada ou não) para registrar a ocorrência do descumprimento da medida, mas sim afastar o perigo, potencial ou real, acautelando a vítima com medida protetiva deferida judicialmente.
Se o Juiz pode requisitar auxílio policial para garantir efetividade das medidas protetivas (art. 22, § 3.°, da LMP), com mesma razão pode a vítima socorrer-se da Polícia para assegurar sua proteção e prevenção de mal maior.
Nos casos de utilização de Monitoração Eletrônica (tornozeleira eletrônica), conforme arts. 22, § 1.°, da LMP c/c 319, inc. IX, do CPP, a fiscalização das medidas protetivas é mais efetiva e automática pelo Estado, cujo sistema operacional adverte aos órgãos de Segurança Pública (ou Empresas de gestão dos aparelhos eletrônicos) o descumprimento da medida protetiva, não necessitando de provocação da vítima, muitas vezes nem ela sabendo ainda do risco.
Desta feita, a Lei Maria da Penha surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como forma de assegurar efetividade aos direitos humanos das mulheres, enquanto gênero vulnerável, carecedor de proteção especial do Estado, buscando-se medidas eminentemente cíveis de proteção e de prevenção, sendo necessária a atuação policial preventiva nos casos de descumprimento de medida protetiva de urgência, ainda que não configure crime de desobediência ou prática de nova infração penal, já que a atuação da Polícia neste caso ocorre em caráter preventivo, preservando-se a ordem pública e a proteção das mulheres vítimas.

[1] Expressão utilizada por Chico Alencar no texto “Para humanizar o Bicho Humano” (ALENCAR, Chico. Direitos Mais Humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, pág. 26).
[2] ___________________. pág. 26.
[3] “Art. 4.º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (...) XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (redação dada pela Lei Complementar n. 132, de 2009).
[4]  Sobre “leis penais simbólicas” doutrina Lélio B. Calhau que “a qualidade da resposta ao crime não depende prioritariamente da coerência do sistema legislativo criminal. Esperar a resposta somente das leis penais é o que caracterizamos como leis penais simbólicas. Elas existem, causam repercussão quando são sancionadas, mas na prática seus efeitos são irrisórios (quando não prejudicam a harmonia do sistema). No Brasil, são raras as leis criminais que são precedidas de estudos criminológicos científicos” (CALHAU, Lélio B. Resumo de Criminologia. Niterói RJ: Impetus, 2013, 8. ed., pág. 04).
[5] Lélio B. Calhau (Resumo de Criminologia, pág. 44) discorrendo sobre a LMP explica que “é uma lei que foi sancionada com profundo sentimento vitimológico. Essa forma de vitimização possui altos índices de impunidade (cifras negras) e merece uma atenção mais qualificada e especializada por parte do Poder Público”.
[6] “Jung falava de inconsciente coletivo de ordem universal. A etnoanálise retoma a noção de inconsciente coletivo, com a condição de não confundir coletivo com universal; o coletivo é próprio de cada cultura. A prática terapêutica depende do contexto étnico do sujeito que sofre. Não existe sujeito humano independente da sociedade familiar, política e religiosa em que ele nasceu e viveu” (JULIEN, Philippe. A psicanálise e o religioso: Freud, Jung, Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, pág. 41).
[7] “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO.
1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.
2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. "O
fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas" (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012).
3. Recurso especial não provido.”
[8] Confira o Artigo deste Autor “Em briga de marido e mulher, a Defensoria Pública também mete a colher”. Disponível em: http://justificando.com/2015/07/20/em-briga-de-marido-e-mulher-a-defensoria-publica-tambem-mete-a-colher/. Acesso em 01/08/2015.
[9] Jorge de Oliveira Vargas sustenta que “em princípio nada impede que este dispositivo penal possa ser utilizado para garantir o cumprimento da ordem judicial quando os outros meios que visassem este objetivo falhassem; pois descumprir uma ordem judicial é desobedecer uma ‘ordem legal de funcionário público’” (As consequências da desobediência da ordem do juiz cível. Curitiba: Juruá, 2001, pág. 150).
[10] Não se está a afirmar a ineficácia integral da medida, mas sim a inadequação do meio proposto para solução dos casos de inação da Polícia, quando provocada a preservar a ordem pública em virtude do descumprimento de ordem judicial cível concessiva de medida protetiva de urgência.
[14] “Hoje, a separação existente entre a polícia militar, considerada, ao mesmo tempo, como uma polícia repressiva e preventiva, e a polícia civil (e mesmo a federal, em sua área de atuação), cuja finalidade precípua é investigar os delitos já ocorridos, vem diminuindo” (GRECO, Rogério. Atividade Policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 2. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2009, pág. 04).


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