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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O erro e o Direito Penal



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Há poucos dias, foi noticiado que um agricultor, na companhia de seu primo, saiu para caçar no Estado do Acre. No meio do percurso, deparou-se com seu irmão, que não seguiu com a dupla na empreitada, optando por adentrar na mata e, sozinho, realizar sua própria caçada.
Porém, o agricultor, logo em seguida, seguindo seu percurso, ouviu barulhos e percebeu um movimento estranho mata adentro. Ato contínuo, assobiou com o fim de chamar a atenção de alguém que, por ventura, ali estivesse. Mas, como não obteve resposta, disparou sua espingarda contra o que acreditou ser algum animal bravio. Infelizmente, acabou constatando se tratar de seu irmão, que estaria fazendo algum tipo de brincadeira com a dupla e que, em razão do disparo, acabou por falecer[1].
As caçadas realizadas pelo Brasil afora costumam trazer, ao cotidiano forense, inúmeras situações que dificultam a aplicação de nossas leis, demandando do intérprete uma atenção especial quanto ao animus do agente que, por erro, vem a matar um companheiro, ou até mesmo outro caçador que esteja pelas redondezas.
Sendo assim, é preciso que se distingam duas situações diversas: a) o caçador que mata uma pessoa acreditando ter disparado sua arma contra o animal objeto da caça; b) o caçador que mata uma pessoa acreditando ser ela um animal bravio: dispara sua arma para salvar-se de um perigo atual imaginário.
No primeiro caso, o agente, mediante a falsa percepção da realidade que o cerca, erra quanto a um elemento do tipo penal presente no artigo 121CP: matar alguém. Pelas circunstâncias concretas, o agente acredita estar atirando no animal que procura quando, na realidade, acaba por disparar contra uma pessoa.
À vista disso, segundo nossa doutrina, só pode ser sujeito passivo do crime de homicídio “o ser vivo nascido de mulher”. Logo, se o agente matasse um animal, não cometeria o crime de homicídio. Portanto, o autor dos fatos que acredita atirar em um animal quando, na verdade, atira em uma pessoa, incide claramente em erro, já que errou sobre a elementar alguém.
Esta modalidade de erro configura o chamado erro de tipo, presente no artigo 20CP:O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. Por não ser o caso sub studio, o erro de tipo e suas características não serão abordados.
Sendo assim, resta analisar a conduta do agente conforme noticiado.
Deste modo, infere-se que o agente, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima(artigo 20CP, primeira parte).
Antes de adentrar efetivamente no tema, alguns esclarecimentos se fazem imperiosos: quais situações tornam legítima a conduta do agente? São as chamadas excludentes de ilicitudes (para alguns doutrinadores, excludentes de antijuridicidade), previstas no artigo 23, do Código Penal: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de um direito.
Com efeito, o agente que atua amparado por quaisquer dessas excludentes de ilicitude, pratica um fato típico, porém lícito, autorizado pelo ordenamento penal. Logo, por justificarem, autorizarem a conduta, as excludentes de ilicitude são chamadas também de causas justificantes e, consequentemente, o agente que agiu nessas circunstâncias, não será processado por crime algum, visto que pratica um fato lícito.
Porém, também se vislumbra perfeitamente possível que o agente venha, mediante erro, a imaginar uma situação que justifique sua conduta. Ou seja, pode o agente atuar imaginando que está amparado por quaisquer das excludentes de antijuricidade. Tem-se, então, as chamadas descriminantes putativas: o termo putare, oriundo do latim, traduz a ideia de imaginação, suposição.
Desta feita, pode haver a legítima defesa real (o agente está, empiricamente, agindo em legítima defesa) ou legítima defesa putativa, imaginária (o agente, por erro, acredita estar agindo em legítima defesa, quando na verdade não está). Todas as causas justificantes admitem sua figura putativa.
Retomando o raciocínio inicial do artigo 20§ 1ºCP, verifica-se que reside, na presente abordagem, crucial celeuma: o autor dos fatos supôs uma situação que, se existisse, tornaria sua ação legítima. Mas qual situação justificante ele supôs? E mais: o erro derivou de um comportamento culposo? (parte final do artigo 20§ 1º,CP).
Não se pode perder de vista, in casu, que o agente imaginou estar cercado por um animal bravio. Seria hipótese de legítima defesa? Nossa doutrina pátria e a jurisprudência entendem pacificamente que o pressuposto básico da legítima defesa é a agressão, seja atual ou iminente, e que essa agressão somente pode derivar de uma ação humana.
Portanto, afastada a hipótese de legítima defesa putativa ao caso.
Desse modo, seguindo entendimento cediço, quando um animal ataca o agente, esse pode agir e sacrificá-lo, vez que está acobertado pelo estado de necessidade.
Sendo assim, no presente caso, verifica-se que o agente supôs uma situação (proximidade de um animal bravio) que, se realmente existisse, autorizaria o disparo por meio da justificante do estado de necessidade. Consequentemente, o agente atuou em erro, configurando o estado de necessidade putativo.
Todavia, há ainda outra controvérsia que necessita ser superada: o autor dos fatos agiu culposamente? Isto é, ele errou, no caso concreto, porque foi imprudente ou negligente?
A resposta muda radicalmente a responsabilidade do agente. Se ele não agiu com culpa, observando o regramento de conduta do homo medius, ou seja, teve o dever de cuidado objetivo que a todos é imposto, não será culpável e, portanto, ficará isento de pena. Por outro lado, se lhe faltou esse dever de cuidado objetivo, responderá culposamente pelo crime, tendo em vista a expressa disposição da parte final do artigo 20§ 1ºCP.
Finalmente, resta saber se a culpa stricto sensu repousa na conduta do autor. Não pairam dúvidas, pela criteriosa análise do caso relatado, de que o agricultor agiu em estado de necessidade putativo, já que acreditou atirar em algum animal que poderia colocá-lo em risco, quando, na verdade, alvejou seu irmão, que estava escondido na mata a fim de assustar os caçadores.
De qualquer modo, formar uma opinião jurídica sem a devida consulta aos autos soa como leviano. Porém, caso os elementos probatórios apontem no sentido de que a distância, a visão, o momento, a conduta do atirador, somados com o comportamento da vítima, denotem uma situação em que, de fato, seria lícito supor estar próximo de um animal feroz, impõe-se como medida de rigor o afastamento da culpabilidade do autor, vez que sequer agiu culposamente. Vale dizer, atuou com o dever objetivo de cuidado, que a todos é imposto.
Por outro lado, caso aqueles mesmos elementos apontem para uma conduta culposa, poderá o agente se ver processado pelo crime de homicídio culposo.
Não se pode olvidar, no entanto que, ainda que se entenda conforme a segunda conclusão, a conduta do agente lhe causou um sofrimento muito maior do que a pena que poderia ser aplicada, fato que, por si só, enseja a concessão do perdão judicial, mediante sentença extintiva da punibilidade.
Infere-se, desta forma, que o erro em direito penal pode mudar radicalmente a conduta do agente, a depender da modalidade desse erro. De todo modo, cabe ao operador do Direito a análise razoável do instituto, a fim de evitar a desproporção entre a lei e a conduta do agente.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista;
Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.

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